segunda-feira, 26 de julho de 2010

Bicando em Livros: Franz Kafka – Diante da Lei (1925)

Bem amigos, hoje o Rouxinol surge ao Ninho com mais um Gênio, mais um ourive de objetos brilhantes, como esse que seguirá. O autor é Franz Kafka (1883-1924), e o conto, ou melhor, parábola, é Diante da Lei.

O Austro-húngaro Franz Kafka foi um escritor cultuadíssimo em seu tempo. Usava-se de variados temas em sua literatura, que são recheadas de noções existencialistas, modernistas, e até metafísicas. Outro ponto bem focado por Kafka em suas histórias, entre elas O Processo - de onde essa parábola é extraída – era uma satirização das instituições do governo em geral, suas leis, e o excesso de burocracia que atrasa e cria desigualdades na sociedade. Leitura bem interessante, o conto Diante da Lei retrata a busca de um homem para ter acesso a Lei. Não há informações de época, ou nomes. É tudo bem metafórico, e ao mesmo tempo, a narrativa transcorre rapidamente, caminhando para um final, que deixa qualquer um abismado ao ler. Tudo isso em apenas duas páginas.
DIANTE DA LEI

Diante da Lei há um guardião. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.

− E possível − disse o porteiro −, mas não agora.

A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guardião vê isso, ri-se e lhe diz:

− Se isso tanto lhe atrai, experimente entrar, apesar da minha proibição. Mas repare só: sou forte. E mesmo que eu seja o último dos guardiões. De sala para sala, guardas cada vez mais fortes estão de prontidão, de tal maneira que não consigo sequer agüentar o olhar do terceiro depois de mim.

O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensou ele; mas ao observar o guardião, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar até ter licença para entrar. O guardião dá-lhe um banquinho e permite-lhe sentar-se ao lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar e cansa o guarda com suas súplicas. Com freqüência o guardião mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores; e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar ao guardião. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz:

− Só aceito para que você se convença de que não deixou de fazer alguma coisa.

Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente ao guardião: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Torna-se infantil, e como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas de seu abrigo de pele, também suplica a estas que o ajudem a convencer ao guarda. Finalmente, sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formulou. Faz sinais ao guardião para que aproxime, já que o rigor da morte endurece o seu corpo. O guardião vê-se obrigado a baixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estruturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês.

− Que queres saber agora? − pergunta o guarda −. Você é mesmo insaciável.

− Se todos aspiram à Lei − diz o homem −; como é possível então que durante tantos anos, ninguém mais, a não ser eu, pediu para entrar?

O guardião compreende que o homem está para morrer, e para que seus desfalecentes sentidos percebam suas palavras, grita-lhe junto ao ouvido com voz atroadora:

− Aqui ninguém mais, senão você podia entrar, porque só para você era feita esta porta. Agora, vou-me embora e poderei fechá-la.

O Rouxinol alça vôo e se despede por hoje, parafraseando: “Não é demonstração de saúde ser bem ajustado, a uma sociedade profundamente doente” – Jiddu Krishnamurti

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